No Brasil, mais de 17 mil mulheres receberão o diagnóstico de câncer do colo uterino a cada ano pelos próximos três anos, sendo a estimativa do Instituto Nacional do Câncer (INCA). Esse tipo de câncer, o terceiro mais comum entre as mulheres brasileiras (quando excluídos os casos de câncer de pele não-melanoma) foi o responsável por 6.600 mortes no Brasil no ano de 2020. O câncer de colo uterino se coloca como um problema de saúde pública, afetando mais de 600 mil mulheres em todo o mundo a cada ano, com uma mortalidade anual estimada de 342 mil mulheres. E mais de 85% dessas mortes acontece em países de média e baixa renda. Mas salvar essas vidas está ao alcance de nossas mãos.

O câncer de colo uterino é causado, em mais de 90% das vezes, pela infecção persistente pelo vírus chamado HPV (papilomavírus humano). Existem mais de 200 tipos de HPV, alguns deles associados ao desenvolvimento de doenças benignas, como as verrugas genitais. Por outro lado, cerca de 13 tipos de HPV são considerados de alto risco, ou seja, capazes de induzir o desenvolvimento de diferentes tipos de câncer, entre eles o de colo uterino. Dentre os tipos de alto risco, o 16 e o 18 são os mais frequentemente associados ao câncer de colo uterino. A infecção pelo HPV é transmitida por via sexual, ou seja, é uma infecção sexualmente transmissível extremamente comum. Sabe-se que 80% dos homens e das mulheres já foram expostos/infectados pelo HPV pelo menos uma vez até os 50 anos de idade. Mas nem todas as mulheres que entram em contato com o HPV vão desenvolver câncer de colo uterino. Isso porque na grande maioria das vezes o organismo consegue desenvolver uma resposta imune eficaz que leva à eliminação do vírus. A persistência da infecção leva, ao longo de vários anos, ao desenvolvimento de lesões pré-cancerosas que, se não diagnosticadas e tratadas, podem evoluir para o câncer.

O conhecimento de todo esse processo envolvendo infecção pelo HPV, formação de alterações celulares e lesões pré-cancerosas, culminando no surgimento do câncer de colo uterino, permitiu o desenvolvimento de estratégias de rastreamento do câncer de colo uterino. E esse é um dos pilares do programa da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a erradicação do câncer de colo uterino. No Brasil, o programa de rastreamento com o exame de Papanicolaou já está estabelecido há várias décadas e a nossa experiência junto com a de outros países, especialmente países mais ricos, nos mostra que é um método eficaz na detecção de lesões pré-cancerosas e do câncer em estádios mais precoces, permitindo a cura da doença. Mas, e se fosse possível evitar a persistência da infecção pelo HPV, cortando, assim, o mal pela raiz?

Isso não só é possível, como já é realidade em cerca de 114 países, inclusive no Brasil. E melhor ainda, via Sistema Único de Saúde. Voltemos um pouco à relação entre infecção pelo HPV e o câncer de colo uterino. Quando o indivíduo é infectado pelo HPV, o sistema imunológico desenvolve um certo grau de resposta imunológica que, com grande frequência consegue eliminar o vírus. No entanto, essa resposta imune não é duradoura e protege muito pouco contra reinfecções pelo HPV. Em homens, inclusive, essa resposta imune é ainda mais escassa. Faz sentido então pensarmos em uma forma de potencializar essa resposta imune para garantirmos uma proteção mais robusta e duradoura, capaz de prevenir a persistência da primeira infecção, bem como das reinfecções. Como é possível fazer isso? Muito simples, com uma vacina contra o HPV!

No mundo, hoje existem 5 vacinas contra o HPV licenciadas para uso, 3 delas disponíveis no Brasil. Todas essas vacinas são compostas por partículas que simulam o HPV e carregam algumas proteínas virais mas, por não se tratar de vírus completos e vivos, elas não são capazes de causar infecção viral. Tais vacinas são capazes de induzir uma resposta imunológica que chega a ser 10 vezes superior à resposta imune natural do nosso organismo. Além disso, a produção de anticorpos protetores é bastante duradoura, com alguns estudos mostrando positividade por mais de 15 anos após a aplicação da vacina.

A eficácia das vacinas na prevenção contra as lesões pré-cancerosas e o câncer propriamente dito já está comprovada em diversos estudos bem conduzidos. Alguns países, inclusive, já estão apresentando redução no número de casos de câncer de colo uterino em razão da aplicação da vacina contra o HPV. Por isso, a vacinação contra HPV compreende o segundo pilar do programa da OMS para a erradicação do câncer de colo uterino.

No Brasil, a vacina contra o HPV está disponível no Programa de Imunizações do Ministério da Saúde desde 2014. A vacina disponível é a chamada quadrivalente, pois protege contra quatro tipos de HPV: 6, 11, 16 e 18, os mais comuns na nossa população.

Recentemente, foi aprovada para uso no Brasil uma nova versão da vacina contra HPV chamada nonavalente, que protege contra 9 tipos de HPV. Essa nova vacina ainda não é fornecida pelo Ministério da Saúde, somente em serviços privados.

A recomendação é de que a vacina contra o HPV seja administrada às meninas e aos meninos com idade entre 9 e 14 anos, com duas doses com intervalo de seis meses. A segunda dose pode ser administrada com intervalo maior, caso o tempo correto de seis meses não tenha sido respeitado. Se a primeira dose for feita a partir dos 15 anos, deve-se administrar três doses, a segunda com intervalo de 2 meses e a terceira com intervalo de 6 meses (contando a partir da primeira). Além disso, indivíduos que vivem com o HIV, transplantados (órgãos ou medula) e pacientes oncológicos podem receber a vacina entre os 9 e 45 anos de idade, com o esquema de três doses. O ideal é que a vacina seja administrada antes do primeiro contato com o vírus, ou seja, antes do início da vida sexual ativa. No entanto, hoje já sabemos que mesmo após o início da vida sexual há benefício da vacinação na redução do risco de infecção persistente.

É muito importante falarmos sobre o assunto e conscientizarmos as pessoas sobre os benefícios potenciais da vacinação contra o HPV na prevenção de um câncer que acomete ainda tantas mulheres no Brasil e no mundo. Dados do Ministério da Saúde mostram que nos últimos anos houve uma redução da cobertura vacinal contra o HPV no Brasil. Em 2019, 87% das meninas e 61,5% dos meninos com idade entre 9 e 14 anos receberam a primeira dose da vacina contra o HPV. Em 2022, a cobertura caiu para 75,8% e 51,1%, respectivamente. É necessário um esforço conjunto do governo e da sociedade no sentido de atingirmos a meta estipulada pela OMS de atingirmos uma cobertura vacinal de 90% até o ano 2030, no caminho para a erradicação do câncer de colo uterino.

O combate ao câncer de colo uterino pode salvar a vida de milhares de mulheres em todo o mundo. As ferramentas para isso estão disponíveis. Nosso desafio é fazer com que elas estejam ao alcance de todas as mulheres.

 

Referências

 

  1. Instituto Nacional de Câncer (INCA). Dados e números sobre câncer do colo do útero. Relatório Anual 2023. Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/dados_e_numeros_colo_22marco2023.pdf. Acessado em 07 de janeiro de 2024.

 

  1. Instituto Nacional de Câncer (INCA). Estimativa 2023. Incidência de Câncer no Brasil. Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//estimativa-2023.pdf. Acessado em 07 de janeiro de 2024.

 

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