O câncer é um dos principais problemas de saúde pública no mundo. Segundo o relatório global sobre o câncer da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (International Agency for Research on Cancer – IARC), no ano de 2020 foram diagnosticados em todo o mundo mais de 19 milhões de novos casos de câncer. Nesse mesmo ano, aproximadamente 10 milhões de mortes ocorreram por causa desse grupo de doenças, colocando o câncer como uma das principais causas de morte em todo o mundo. Até meados do século passado, o câncer era considerado uma doença “incurável”, “terminal”, um estigma que ainda faz parte do imaginário de muitas pessoas sobre a doença. Felizmente, a segunda metade do século XX testemunhou um rápido desenvolvimento do conhecimento sobre os mecanismos de desenvolvimento do câncer, seus fatores de risco, bem como da biologia dessas doenças, permitindo o desenvolvimento de estratégias de diagnóstico precoce (rastreamento) e tratamento, contribuindo para a redução da mortalidade por câncer observada em todo o mundo. De fato, se pegarmos os EUA como exemplo, a porcentagem de pessoas vivas 5 anos após o diagnóstico de câncer passou de 49% há 50 anos, para cerca de 70% atualmente. No entanto, esta não é a realidade de muitos países do mundo.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima um aumento de 60% no número de casos de câncer no mundo nas próximas duas décadas, sendo que mais de 80% desses novos casos ocorrerão nos países de média e baixa renda. Isso pode ser atribuído ao aumento da expectativa de vida nesses países, ao controle de outras causas de morte como doenças infecciosas e doenças materno-fetais, ao aceleramento da urbanização das cidades e às mudanças no estilo de vida. Nos países mais pobres, grande parte dos recursos vêm sendo empregados no combate às doenças infecciosas e na melhora da saúde materna e infantil, limitando o acesso da população a programas eficazes de prevenção e tratamento do câncer. Nesse contexto, os esforços no controle do câncer devem ter como foco a ampliação do acesso ao diagnóstico precoce e tratamento do câncer, mas também a adoção de medidas para a prevenção do desenvolvimento dessas doenças. Existem diversas estratégias de prevenção contra o câncer, algumas delas referem-se a procedimentos médicos como vacinação e rastreamento, enquanto outras estão relacionadas ao controle dos fatores de risco ambientais e de hábitos de vida.

Hoje, estimamos que entre 30-50% dos casos de câncer podem ser prevenidos pelo controle de fatores de risco e adoção de estratégias preventivas baseadas no conhecimento médico atual. Você não leu errado, até METADE dos casos de câncer podem ser prevenidos se os conhecimentos que temos hoje sobre o assunto forem aplicados.

No que diz respeito aos fatores de risco, sabemos que aproximadamente um terço dos casos de câncer podem ser atribuídos a cinco principais fatores de risco relacionados ao estilo de vida:

  • Dieta pobre em frutas e vegetais
  • Sedentarismo/Falta de atividade física
  • Sobrepeso/Obesidade
  • Tabagismo
  • Consumo de álcool

 

  1. Dieta

Os hábitos dietéticos têm impacto importante no risco de desenvolvimento de diversos tipos de câncer. Vários estudos mostraram um aumento do risco de determinados tipos de câncer em populações que consomem dietas ricas em carne vermelha, carne processada, gordura animal, sal e açúcares refinados. Elevado consumo de carne vermelha está associado a aumento do risco de câncer de cólon, estômago, esôfago, mama, pulmão e próstata.

Quando falamos em medidas dietéticas para prevenção do câncer, a maioria das evidências aponta para o benefício de se adotar uma dieta rica em frutas e vegetais. Interessante notar que alguns estudos mostraram menor risco de câncer entre pessoas de hábito vegetariano ou vegano. Muitas pessoas acreditam que aumentando o consumo de um alimento específico é suficiente para prevenir o desenvolvimento do câncer. Muito pelo contrário, o real benefício provavelmente será obtido através da adoção de um padrão global de dieta, seguido ao longo de vários anos ou décadas.

Mas qual dieta eu devo seguir? A recomendação atual pela OMS e demais sociedades médicas e de nutrição é de que se adote uma dieta com mesmo padrão da chamada Dieta do Mediterrâneo. Ela se caracteriza por ser rica em frutas, vegetais, grãos integrais, sementes e castanhas, e pobre em carnes processadas, açúcar e grãos refinados. Existem evidências de que a adoção desse padrão de dieta está associada a redução do risco de diferentes tipos de câncer, principalmente aqueles que se originam no trato gastrintestinal (estômago, intestino).

E finalmente, mas não menos importante, há que se reforçar que até o momento não temos evidências consistentes de que o uso de suplementos alimentares, incluindo vitaminas, reduza o risco de desenvolvimento de câncer.

 

  1. Atividade física / Sedentarismo

A relação entre a prática regular de atividade física e a prevenção do câncer já é conhecida desde os anos 1920. Diversos estudos corroboraram os primeiros achados e, mais recentemente, uma análise combinada de mais de 1,44 milhão de pessoas na Europa e nos EUA, sugeriu que indivíduos com maiores níveis de prática de atividade física apresentam um risco 10-40% menor de desenvolverem câncer, quando comparados àqueles com menor nível de atividade. Tal benefício foi observado em relação a uma ampla gama de cânceres, incluindo mama, cólon, útero, estômago, rim, pulmão, bexiga, entre outros. Tal efeito protetor é observado não apenas para o nível de atividade física na idade adulta, mas se estende à prática de atividade física ao longo de toda a vida.

Outro aspecto importante nesse contexto é o tempo de sedentarismo, definido como o tempo em que se permanece assentado ou deitado, frequentemente assistindo televisão ou utilizando computador e dispositivos móveis (smart phone, tablet). Estudos mais recentes, envolvendo a observação de grande número de pessoas, evidenciou que os indivíduos com maiores períodos de sedentarismo chegaram a apresentar aumento de quase 80% no risco de determinado subtipo de câncer de mama.

A OMS publicou, em 2020, as novas recomendações para a prática de atividade física para crianças, adolescentes e adultos. Tais recomendações se baseiam em evidências científicas associando a atividade física regular a benefício não só em relação à prevenção do câncer, mas também benefícios para a saúde cardiovascular, prevenção de diabetes tipo 2, melhora da saúde cognitiva e do sono, bem como da saúde mental. Cabe ressaltar que a atividade física regular também reduz o risco de morte por todas as causas. Seguem as recomendações para adultos:

  • Pelo menos 150-300 minutos/semana de atividade física aeróbica moderada

OU

  • Pelo menos 75-150 minutos/semana de atividade física aeróbica vigorosa

 

Para obter benefício adicional, recomenda-se acrescentar atividades de fortalecimento muscular pelo menos 2 vezes por semana.

 

  1. Sobrepeso / Obesidade

A obesidade está entre os fatores de risco de câncer com maior potencial de prevenção. Estima-se que a obesidade seja responsável por até 50% do risco de câncer entre as pessoas com menos de 65 anos. Segundo o IARC, cerca de 13 tipos de câncer têm a obesidade como um dos principais fatores desencadeantes, entre eles o câncer gástrico, de ovário, mama após a menopausa, útero, rim, cólon, reto e pâncreas. Uma relação pouco falada é a associação entre a obesidade e a doença hepática não-relacionada ao álcool, uma condição com elevado risco de câncer hepático (carcinoma hepatocelular).

Os mecanismos pelos quais a obesidade leva ao desenvolvimento de câncer variam entre os diferentes cânceres, e existe também uma diferença em termos de gênero. Sabemos hoje que a obesidade é um fator contribuinte para o risco de câncer de forma mais importante entre as mulheres (55%) do que nos homens (24%). Além disso, estudos sugerem uma associação mais forte para o ganho de peso que ocorre na idade adulta. Variações cíclicas no peso corporal, ou seja, períodos de perda e ganho de peso, também estão associadas a aumento do risco de câncer.

Por outro lado, evidências nos mostram que a redução de peso e a manutenção dessa perda está associada a redução do risco de câncer. Por exemplo, os resultados do estudo WHS (Women’s Health Study) sugeriram que mulheres que perderam 10 Kg ou mais durante a vida adulta, e mantiveram o peso, apresentaram um risco 57% menor de câncer.

 

  1. Tabagismo

Os produtos do tabaco contêm mais de 70 substâncias químicas que podem causar danos no DNA, sendo que 16 deles estão reconhecidamente associados ao risco de câncer em humanos. O uso de tabaco, o fator de risco mais prevenível para câncer, é responsável por mais de 20% das mortes por câncer em todo o mundo. Cerca de 80% dos casos de câncer de pulmão em homens e 50% em mulheres podem ser diretamente atribuídos ao cigarro. No entanto, o tabagismo está associado a aumento do risco de diversos outros cânceres, como bexiga, laringe, cavidade oral, estômago, pâncreas, cólon e reto, e colo uterino.

O benefício com a cessação do tabagismo já se inicia no primeiro ano após a interrupção do uso e aumenta ao longo do tempo. Tais benefícios são mais pronunciados quando a cessação do tabagismo acontece antes dos 40 anos de vida, situação na qual estima-se uma redução de 90% do risco de mortalidade precoce associada ao tabagismo. A interrupção do tabagismo antes dos 50 anos leva a uma redução de 62% no risco de morte por câncer de pulmão.

Não existe consumo seguro de produtos do tabaco, de forma que a OMS recomenda que todos os indivíduos que consumam esses produtos cessem o uso. Em diversos países, programas de prevenção e controle do tabagismo foram implantados nas últimas décadas, levando a redução significativa e sustentada ao longo do tempo nas taxas de tabagismo.

 

  1. Álcool

O consumo de álcool é responsável por cerca de 4% dos casos de câncer no mundo, o que representou 740.000 casos no ano de 2020. Os principais tipos associados ao consumo de álcool são os cânceres de esôfago, fígado, mama e estômago. A magnitude de aumento do risco de câncer varia de acordo com a quantidade de álcool consumida, o tipo de bebida e a associação a outros fatores de risco, como o tabagismo. Ao contrário do tabagismo, existe pouca atenção pública à relação entre o consumo de álcool e o câncer.

Até mesmo o consumo de pequenas quantidades de álcool pode aumentar o risco de câncer. Por exemplo, alguns estudos mostraram que o consumo de uma dose por dia (6-8g de álcool) aumenta o risco de câncer de mama em 11%, e o consumo de duas doses por dia aumenta em 8% o risco de câncer de cólon e reto.

Com o objetivo de reduzir os malefícios do consumo de álcool, não somente em relação à prevenção de câncer, os especialistas do Dietary Guidelines for Americans recomendam que adultos em idade legal prefiram não consumir álcool, ou o faça em quantidade moderada. Isso corresponde ao consumo de uma dose por dia para as mulheres ou duas doses por dia para os homens. Uma dose equivaleria aproximadamente a uma taça de vinho, um copo de cerveja ou uma pequena taça de destilado. Mas reforça-se que o consumo de até menos de uma dose por dia está associado a aumento do risco de câncer.

 

  1. Infecções

Devido ao cada vez mais reconhecido papel de diferentes tipos de agentes infecciosos e o risco de câncer, é importante reduzir a exposição a esses patógenos. Nesse sentido, além da adoção de medidas para melhora das condições de saneamento, acesso a água tratada, educação quanto à prática de relação sexual protegida, a vacinação representa uma das principais estratégias preventivas.

A infecção pelo HPV, ou vírus do papiloma humano, é responsável por mais de 90% dos casos de câncer de colo uterino. A primeira vacina contra o HPV foi disponibilizada em 2006 e, atualmente, 125 países incluem a vacina contra o HPV em seus calendários vacinais. O potencial de prevenção do câncer de colo uterino, entre outros, é tão importante que a OMS classifica essa vacina na lista de tratamentos essenciais. De fato, a vacinação contra o HPV tem o potencial de contribuir para a erradicação do câncer de colo uterino no mundo, com um potencial de redução de 100% na mortalidade por essa doença.

A infecção crônica pelo vírus da hepatite B está associada ao desenvolvimento de câncer hepático (carcinoma hepatocelular). A vacina contra esse vírus está disponível no calendário vacinal brasileiro, tendo ela um potencial de redução do risco de morte por doença hepática e por câncer hepático da ordem de 90%.

 

Referências

 

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