Em novembro do último ano, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) publicou o relatório anual de estima de neoplasias malignas, que nos trouxe em números uma realidade infelizmente alarmante. No Brasil, excluindo os tumores de pele do tipo não melanoma, o câncer do colo do útero apareceu em terceiro lugar entre as neoplasias mais incidentes na população feminina.

Para o ano de 2023, estima-se 17.010 novos casos, o que representa uma taxa nacional aproximada de 13 casos em cada 100 mil mulheres. Existe, entretanto, uma discrepância de incidência entre as regiões do Brasil; na região Norte e Nordeste, o câncer do colo uterino ocupa a segunda posição entre neoplasias mais incidentes, com taxas aproximadas de 20/100 mil e 17,5/100 mil, respectivamente. Em contraste a esse dado, na região Sul ocupa a quarta posição (14,55/100 mil) e, na região Sudeste (12,93/100 mil), a quinta posição. No que tange a mortalidade por câncer de colo uterino, a taxa padronizada de mortalidade pela população mundial na região Norte foi de 9,52 mortes por 100 mil mulheres, representando a principal causa de óbito por câncer feminino nessa região.

Alguns fatores contribuem para tais diferenças nos dados e piores desfechos da doença nas regiões Norte e Nordeste. O primeiro e majoritário é a baixa cobertura e eficácia dos programas de rastreamento. Associado a isso, é sabido que essas regiões detêm maiores taxas de infeção pelo HPV (Papilomavirus Humano), principal fator de risco para desenvolver lesões neoplásicas precursoras, que quando não diagnosticadas e tratadas em tempo evoluem para câncer de colo uterino. Por fim, o acesso aos métodos de diagnóstico avançado (colposcopia/imagem/biópsia) e tratamento (cirurgia/radioterapia/quimioterapia) é mais lento nas regiões Norte e Nordeste, o que favorece o diagnóstico em estádio mais avançado e, eventualmente, incurável. Estima-se que 35 a 40% dos casos serão diagnosticados em estádios III (localmente avançado) e IV (com metástases).

O HPV é o principal fator de risco:

O câncer do colo do útero está associado à infecção persistente por subtipos oncogênicos do vírus HPV (Papilomavírus Humano), especialmente o HPV-16 e o HPV-18, responsáveis por cerca de 70% dos cânceres cervicais. Em sua maioria, a infecção pelo HPV é transitória e regride espontaneamente nos primeiros seis meses a dois anos após a exposição. Em um pequeno número de casos, quando a infecção persiste e é causada por um subtipo viral oncogênico, pode ocorrer o surgimento de lesões denominadas precursoras (lesão intraepitelial escamosa de alto grau e adenocarcinoma in situ), cuja identificação e tratamento adequado evita a progressão para o câncer de colo uterino invasivo.

Outros fatores como à imunidade da portadora da infeção, à genética e o comportamento sexual podem influenciar os mecanismos ainda pouco conhecidos que determinam a regressão ou a persistência da infecção, assim como a progressão das lesões precursoras ao câncer. O início de atividade sexual precoce e a prática com múltiplos parceiros são fatores de risco para o desenvolvimento de câncer do colo do útero. A idade também interfere nesse processo, sendo que a maioria das infecções por HPV em mulheres com menos de 30 anos pode regredir espontaneamente, ao passo que acima dessa idade a persistência é mais frequente.

 

Exame citopatológico: rastreamento

 O principal método e mais amplamente utilizado para rastreamento do câncer do colo do útero é o teste de Papanicolau (ou exame citopatológico do colo do útero). Segundo a OMS, uma cobertura da população-alvo de, no mínimo, 80% associada a garantia de diagnóstico e tratamento adequados dos casos alterados, reduz, em média, de 60 a 90% da incidência do câncer cervical invasivo. A experiência de países desenvolvidos mostra que a incidência do câncer do colo do útero foi reduzida em torno de 80% onde o rastreamento citológico foi implantado com qualidade, cobertura, tratamento e seguimento das mulheres (WHO, 2007).

No Brasil, a rotina recomendada para o rastreamento é a repetição do exame Papanicolau a cada três anos, após dois exames normais consecutivos realizados com um intervalo de um ano. A priorização desta faixa etária como a população-alvo do Programa justifica-se por ser a de maior ocorrência das lesões precursoras de alto grau, passíveis de serem tratadas efetivamente para não evoluírem para o câncer.

Entre 2016 e 2021, observou-se uma oferta estável de exames citopatológicos no Sistema Único de Saúde (SUS), com declínio ao final deste período devido a pandemia de COVID 19. Em 2021, houve um aumento no número de exames em relação à 2020, mas ainda inferior aos patamares alcançados nos anos anteriores à pandemia. As regiões Sudeste e Nordeste foram as que mais realizam de exames.

É importante, entretanto, analisar criteriosamente os dados, assim como a maneira que eles são coletados. Um maior número de exames na população-alvo não garante um programa de rastreamento melhor ou de cobertura efetiva; é necessário considerar a periodicidade dos exames. Um alto número de exames pode ser devido à repetição dos exames pelas mesmas mulheres, em periodicidade menor do que a trienal recomendada. Há ainda que se considerar uma possível superestimação dos dados em função de vieses inerentes aos tipos de pesquisas relacionados à autodeclaração. As respostas autorreferidas podem estar sujeitas a vieses de memória e podem variar de acordo com a compreensão da pergunta. Por fim, é valido ressaltar que o Brasil é um país continental. Sabe-se que a cobertura do exame citopatológico do colo do útero nas capitais é grande e se mantem perto de 80% na última década. Da mesma maneira, o acesso aos serviços de saúde nas capitais tende a ser melhor.

Na tabela abaixo, observamos a proporção de mulheres que realizaram o exame citopatológico do colo do útero em 2019.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional de Saúde 2019. Nota: Intervalo de confiança de 95% indicado pela barra de erros.

 

Em 2019, o IBGE reportou que 6,1% das mulheres entre 25 e 64 anos de idade nunca fizeram o exame preventivo. A tabela abaixo compila o principal motivo de nunca ter feito exame preventivo.

 

Principal motivo de nunca ter feito exame preventivo %

Não acha necessário 45,1
Não foi orientada para fazer o exame 14,8
Tem vergonha 13,1
Nunca teve relações sexuais 8,8
O serviço de saúde era distante, demorado ou com horário de funcionamento incompatível com o da mulher 7,3
Outro 5,2
Fez cirurgia de retirada do útero/histerectomia 2,3
Tem dificuldades financeiras 2,1
Está marcado, mas ainda não realizou 1,4

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional de Saúde 2019.

 

Por fim, é importante citar que a estratégia de rastreamento do câncer de colo de útero deve se modificar em breve no Brasil. Exames de detecção do HPV de alto risco estão sendo amplamente utilizados em países desenvolvidos há algum tempo, a fim de encontrar a parcela de mulheres que estiveram expostas ao vírus (principal fator de risco de câncer cervical) e assim, selecioná-las para um programa específico de exames de vigilância (colposcopia e citologia). Já existem estudos no Brasil, os quais devem motivar alterações na política de rastreamento das mulheres brasileiras.

 

Vacina: a esperança e possibilidade de erradicação

 A prevenção primária do câncer do colo do útero está relacionada à diminuição do risco de contágio pelo HPV. A transmissão do vírus ocorre por via sexual, através de lesões microscópicas na mucosa ou pele da região genital durante o sexo. Consequentemente, o uso de preservativos (camisinha) pode proteger do contágio pelo HPV.

A principal forma de prevenção, entretanto, é a vacina contra o HPV. Em 2014, O Ministério da Saúde implementou no calendário vacinal o imunizante tetravalente contra o HPV para meninas; em 2017, houve ampliação para meninos. A vacina protege contra os subtipos 6, 11, 16 e 18 do HPV. Os dois primeiros causam verrugas genitais e os dois últimos são responsáveis por cerca de 70-80% dos casos de câncer do colo do útero. A faixa etária alvo da vacina são as meninas e os meninos com idade entre 9 e 14 anos; o imunizante é mais eficaz se usado antes do início da vida sexual. Preconiza-se duas doses, com intervalo de seis meses entre elas.

No Brasil, o objetivo é vacinar pelo menos 80% da população alvo em busca de uma redução na incidência do câncer cervical nas próximas décadas. A vacinação, associada aos programas de rastreamento efetivos (com Papanicolau e, futuramente, teste de HPV) são a forma mais efetiva de prevenção deste câncer e poderão erradicar o câncer de colo de útero num futuro próximo.