No ano de 1989, durante um período sabático na Universidade de Cambridge, o médico e imunologista Ian H. Frazer conheceu o virologista chinês Dr. Jian Zhou, ambos interessados no estudo do papilomavírus humano (HPV). Foi o início de uma parceria que levou o Dr Jian a se mudar para a Austrália menos de um ano após esse encontro para trabalharem juntos no desenvolvimento de modelos laboratoriais de HPV. Dezessete anos depois, em 2006, a primeira dose de uma vacina contra o HPV era administrada na Austrália, marcando um importante momento para todas as mulheres ao redor do mundo.

A associação entre a infecção pelo HPV e o desenvolvimento de câncer em seres humanos foi inicialmente sugerida na década de 1970 e, cerca de 13 anos depois, pesquisadores conseguiram demonstrar em laboratório que o vírus era capaz de transformar diferentes tipos de células em células com capacidade de desenvolver tumores. Foi o primeiro vírus causador de câncer descrito. Desde então, a associação entre a infecção pelo HPV e o desenvolvimento de diversos outros tumores foi também estabelecida. E, se nós conhecemos a causa de uma doença, temos nas mãos uma ferramenta essencial para a sua prevenção.

 

Hoje, o câncer de colo uterino ocupa a quarta posição entre os cânceres mais frequentemente diagnosticados em mulheres e representa a terceira causa de morte por câncer entre elas. A cada ano, mais de 300.000 mulheres em todo o mundo morrem em decorrência desse tipo de câncer e cerca de 90% dessas mortes ocorrem em países de média e baixa renda. Trazendo o foco para o Brasil, estima-se que a cada ano mais de 16.000 mulheres são diagnosticadas com câncer de colo uterino. No ano de 2019, mais de 6.500 mulheres morreram em decorrência dessa doença. E, embora tenhamos observado redução significativa no número de novos casos de câncer de colo uterino no Brasil, nos últimos 20 anos, ainda persistem importantes diferenças regionais. E, tão surpreendente quanto esses números, é o fato de que o câncer de colo uterino pode ser evitado.

No final de 2020, a OMS lançou um projeto global ambicioso com o objetivo de acelerar o processo para a eliminação do câncer de colo uterino. O alvo a ser atingido até o ano de 2030 é garantir a vacinação de 90% das meninas contra o HPV antes dos 15 anos de idade, o rastreamento de 70% das mulheres, e o tratamento adequado e em tempo hábil para os casos de lesões precursoras (pré-cancerosas) e de câncer propriamente dito. A OMS estima que, se atingirmos esses três objetivos, seremos capazes de reduzir em 40% o número de novos casos de câncer de colo uterino e evitar 5 milhões de mortes pela doença até o ano de 2050.

De fato, um grupo de pesquisadores colaboradores da OMS conduziram estudo no qual empregaram modelos estatísticos para estimar a viabilidade e o tempo para eliminação do câncer de colo uterino em 78 países de média e baixa renda, de acordo com a adoção do rastreamento e da vacinação contra o HPV. Segundo esse estudo, se tais países conseguirem vacinar 90% das meninas haveria uma redução de 89% no número de casos novos da doença nos próximos 100 anos. Essa redução é muito mais significativa se associamos o rastreamento, resultando no diagnóstico de menos de 1 caso por cada 100.000 mulheres a cada ano. Obviamente tais modelos estatísticos apresentam limitações, mas o que essas estimativas nos mostram é que é possível reduzirmos drasticamente a ocorrência do câncer de colo uterino a níveis de quase erradicação.

No Brasil, estratégias de saúde pública para combate ao câncer de colo uterino vêm sendo desenvolvidas desde a década de 1980, sendo reforçadas a partir de meados da década seguinte. Inicialmente baseado na realização dos testes de rastreamento de Papanicolaou (citologia oncótica do colo uterino), que são realizados de forma oportunista quando a mulher procura uma unidade de atenção básica para a realização do teste ou por outros motivos. Outros métodos de rastreamento, incluindo a pesquisa de material genético do HPV, já existem e estudos estão sendo conduzidos analisando a viabilidade de sua utilização no programa do Sistema Único de Saúde (SUS).

A vacina contra o HPV já está disponível no Brasil e incluída no Programa Nacional de Imunização desde 2014. A vacina administrada é a chamada tetravalente, e tem cobertura principalmente contra quatro cepas de HPV sabidamente causadores de câncer: 6, 11, 16 e 18. Além disso, ela é capaz de oferecer certo grau de proteção cruzada contra outras cepas menos comuns. Inicialmente, a vacina estava recomendada apenas para meninas de 9 a 13 anos, porém em 2017 a vacinação foi expandida para incluir também os meninos de 11 a 13 anos. A vacinação dos meninos, além de proteger contra certos tipos de câncer associados ao HPV, também evita que eles sejam portadores assintomáticos do vírus e possam transmitir o HPV para outras pessoas durante a relação sexual sem proteção.

Nos primeiros seis meses de implementação da vacinação, a vacina era administrada nas escolas, o que garantiu uma cobertura muito alta. A recomendação era que fossem aplicadas duas doses com intervalo de seis meses, seguidas de uma terceira dose após cinco anos. Posteriormente, a terceira dose foi eliminada e mantidas apenas as duas primeiras doses. No entanto, apesar da disponibilidade da vacina gratuitamente no Brasil, a cobertura vacinal ainda é considerada baixa. Os dados oficiais mostram que, no período de 2014 a 2017, 72% das meninas haviam recebido uma dose, mas apenas 45% completaram o esquema de duas doses. Os dados para os meninos são ainda piores, com uma cobertura de apenas 20%. Um fator agravante recente foi a pandemia de COVID-19, que teve impacto direto na atenção à saúde, incluindo a cobertura vacinal contra o HPV.

Idealmente, a vacina deve ser aplicada antes do primeiro contato com o HPV, ou seja, antes da primeira relação sexual. Por isso a faixa etária definida para as meninas e os meninos. No entanto, estudos mais recentes têm mostrado também eficácia da vacina quando administrada mesmo após um primeiro contato com o vírus. Isso talvez impacte as recomendações futuramente. Um outro ponto importante é que sabemos que o tempo transcorrido entre a infecção pelo vírus e o desenvolvimento do câncer de colo do útero é em média de 20 a 30 anos. Sendo assim, os efeitos benéficos da vacinação contra o HPV serão percebidos de forma mais significativa daqui algumas décadas. Nesse contexto, fica clara a importância de fortalecermos concomitantemente o programa de rastreamento do câncer de colo uterino.

Mas os efeitos já estão sendo notados. No Reino Unido, a vacinação contra o HPV foi iniciada no ano de 2008 e, no final de 2021, pesquisadores ingleses publicaram um estudo no qual relataram uma redução do número de diagnósticos de câncer de colo uterino e de lesões precursoras em mulheres jovens (20-30 anos), sendo a estimativa de redução da ordem de 87% quando essas mulheres foram vacinadas entre os 12 e 13 anos. Esses resultados precisam ser analisados com cautela, visto que o câncer de colo uterino geralmente é diagnosticado em idades mais avançadas e raramente em mulheres tão jovens. Mas a observação de uma redução importante nos casos de lesões precursoras alimenta a esperança na possibilidade de reduzirmos drasticamente os casos de câncer de colo uterino e as mortes decorrentes dessa doença.

 

Referências

 

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