Desde final de 2019, o mundo vive um dos momentos mais dramáticos da sua história com o surgimento e explosão do Sars CoV-2. Nada ocupou mais o noticiário e nossas vidas nos últimos meses do que essa crise sanitária que vem mudando nossa forma de se relacionar, interagir e viver. Já foram mais de 400 mil mortes no Brasil por COVID-19 desde o início da pandemia e mais de 3 milhões de mortes no mundo. Mas, ainda assim, temos que lembrar de outra pandemia, que atravessa séculos, e que mata sozinha mais de 7,5 milhões de pessoas ao ano. É mais do que o dobro de mortes causadas pela COVID-19, e isso vem acontecendo ano após ano, causando um impacto monstruoso na nossa sociedade. Estamos falando do tabagismo.

O tabaco já era usado pelas tribos indígenas na América do Sul, quando os colonizadores europeus aqui chegaram. Os indígenas acreditavam que a fumaça tinha poderes mágicos e terapêuticos. Depois com as colonizações portuguesas na África e Ásia, o tabaco chegou a todos os continentes. Durante os séculos XVI e XVII, o tabaco era usado basicamente para fins médicos. Achava-se que combatia a ansiedade e melhorava a atenção, mas com a Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, o habito de fumar tornou-se constante. A partir das duas grandes Guerras Mundiais, o uso de tabaco na forma de cigarro começou a se popularizar.

A partir do século XX, o uso do cigarro atingiu níveis epidêmicos. Mas foi apenas no final dos anos 80, que os efeitos negativos do cigarro se tornaram mais conhecidos e evidentes. E, então, pudemos entender os estragos e cicatrizes que esse problema trouxe à humanidade. O cigarro é a maior causa evitável de morte no mundo todo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) espera para 2021, algo próximo de 8 milhões de mortes em todo mundo por doenças causadas pelo hábito de fumar. Só no Brasil são cerca de 430 mortes ao dia relacionadas ao tabagismo, cerca de 160 mil mortes ao ano.

São mais de 4.800 compostos químicos em um único cigarro, dentre os quais mais de 70 são sabidamente cancerígenos. É disparado o maior fator de risco para o desenvolvimento de câncer e está relacionado a quase todos os tumores, com particular importância para as neoplasias de pulmão, cabeça e pescoço, bexiga e trato gastrointestinal. Especialmente em relação ao câncer de pulmão, 15% de quem fuma deverá desenvolver esse tipo de câncer em algum momento da vida, além disso, 80 a 90% de quem tem o diagnóstico de neoplasia pulmonar é tabagista. Ainda, cerca de 80% dos tumores de pulmão são descobertos em fases avançadas, com metástases, quando o câncer já se espalhou pelo corpo e a chance de cura é muito baixa. São 1,8 milhões de casos novos de câncer de pulmão diagnosticados todos os anos no mundo, com 1,6 milhões de mortes.

Cerca de 80% dos tumores de cabeça e pescoço, que é o terceiro tipo de câncer mais comum no Brasil, e por volta de 70% das neoplasias de bexiga também estão relacionados ao tabagismo. O cigarro, portanto, tem um poder destrutivo imenso capaz de comprometer a qualidade de vida e ceifar vidas de pessoas, muitas vezes, ainda jovens e produtivas.

Além disso, o tabagismo é o segundo fator de risco mais importante para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares (perdendo apenas para hipertensão arterial), lembrando que essas doenças são as que mais matam no Brasil e no mundo. Em 29 de setembro (Dia Mundial do Coração) de 2020, a OMS divulgou que 2 milhões de pessoas morrem ao ano por doenças cardíacas provocas pelo cigarro. O cigarro aumenta o risco de infarto agudo do miocárdio, de arritmias cardíacas, miocardites e de mortes súbitas.

O cigarro é, ainda, o principal fator relacionado a doenças respiratórias como asma, bronquite e enfisema pulmonar. E nesse caso, não tem como não associar o cigarro com a COVID-19. É inegável que a “pandemia” do cigarro agrava a COVID-19. Logo no início da pandemia, em 2020, a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT/OMS) informou que pesquisadores da Universidade de Ciência e Tecnologia de Huazhong, em Wuhan, na China, haviam constatado que as chances de progressão da doença e de óbitos entre fumantes eram 14 vezes maiores do que em não fumante.

O cigarro provoca uma inflamação crônica nos pulmões, causando distúrbios pulmonares graves, além de sabidamente reduzir a imunidade de quem fuma. Se o coronavírus provoca pneumonia e afeta os pulmões, é claro que o dano é maior naqueles pacientes que já tem comprometimento do tecido pulmonar causado pelo tabaco. Portanto, uma parcela das pessoas que morreram em decorrência da COVID-19, indiretamente são vítimas do cigarro.

De acordo com boletim informativo do Ministério da Saúde, desde a primeira contaminação notificada no Brasil até a 53ª semana epidemiológica, período que compreendeu de 27 de dezembro de 2020 a 02 de janeiro de 2021, 191.552 óbitos em decorrência da COVID-19 haviam sido registrados, sendo que 42% das vítimas eram cardiopatas (lembrando que o cigarro é a segunda maior causa de doenças cardiovasculares) e 6% tinham problemas crônicos pulmonares. Uma pesquisa conduzida pela Universidade de Stanfort, na primeira fase da pandemia mostrou que jovens que usam cigarros eletrônicos tinhas de 5 a 7 vezes mais risco de terem COVID-19, provavelmente em razão dos danos pregressos das vias aéreas.

Uma analogia feita por Jaqueline Scholz, cardiologista e diretora do Programa de Tratamento do Tabagismo do Incor, do Hospital das Clínicas da USP exemplifica bem essa relação do cigarro com a COVID-10. “A COVID-19 é um cigarro mais apressado. Os mesmos malefícios que o cigarro causa no indivíduo, que demoram anos para aparecer, são uma avalanche com o vírus, que desencadeia essas mesmas alterações, mas em questão de dias. É uma doença inflamatória pulmonar grave com insuficiência respiratória, alterando todo o sistema de coagulação, fazendo com que os indivíduos tenham trombose, tendo complicações isquêmicas e hemorrágicas, assim como acontece com quem fuma ao longo de anos, com um fator de agressão extremamente elevado”.

O uso do tabaco esta associado, ainda, a impotência sexual, infertilidade, menopausa precoce nas mulheres e uma série de outras enfermidades. Os pacientes que fumam têm, em média,14 anos menos de expectativa de vida em relação a quem não fuma. Além disso, é muito claro que os tabagistas passivos (aqueles que não fumam, mas convivem de perto com quem fuma) também têm mais chances de desenvolver câncer, doenças cardíacas e pulmonares. De todas as mortes causadas pelo cigarro, 12% são em fumantes passivos.

Tudo isso traz um grande impacto não apenas nas vidas daquelas pessoas que perderam entes queridos por conta do cigarro, mas também impacto na economia com perdas de mais de R$ 60 bi ao ano (considerando o que as pessoas doentes ou que morreram, deixaram de produzir e os custos diretos e indiretos com tratamentos das doenças causadas pelo habito de fumar. O que se arrecada com impostos com a venda de cigarros não ultrapassa os R$ 13 bi ao ano, mostrando haver um grande desbalanço nessa equação.

O cigarro é tão prejudicial e viciante, que a nicotina nele contida atinge rapidamente o cérebro e em menos de 10 segundos libera vários neurotransmissores relacionados à sensação de bem-estar e prazer, como a dopamina. Por isso, é um hábito difícil de abandonar. Daquelas pessoas que desejam abandonar o vício menos de 10% tem sucesso sem ajuda de um profissional.

Na tentativa de diminuir, vários países passaram a adotar medidas que estimulassem o abandono do cigarro e outras que evitassem o início do tabagismo. Neste contexto, o Brasil ao lado da Turquia, ganhou lugar de destaque ao ser o segundo país a conseguir implementar de forma eficaz todas as seis medidas sugeridas pela OMS chamadas de Mpower (plano para reverter a epidemia do tabaco) e conseguir reduzir de forma consistente o número de pessoas que fumam. Os esforços para essa redução começaram em 1990, quando profissionais de estados e municípios foram treinados pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA) para tratar pacientes tabagistas no SUS, de forma gratuita.

Outras medidas importantes foram o aumento de impostos sobre os cigarros que chegaram a 83%, em 2018, a proibição de propagandas em televisão e revistas, a obrigatoriedade de se estampar as embalagens de cigarro com fotos e frases que mostrassem os efeitos devastadores do vício e, por fim, a proibição do fumo em locais fechados de uso coletivo. Todas essas medidas levaram o Brasil a reduzir em mais de 50% o número de pessoas que fumam nos últimos 25 anos (34% da população, em 1989, e 10%, atualmente) em todas as faixas etárias; mas ainda temos mais de 20 milhões de tabagistas.

O grande problema é que, em agosto de 2020, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostrou que 34% dos fumantes no Brasil declararam ter aumentado o número de cigarros fumados durante a pandemia, um crescimento associado à deterioração da saúde mental dos tabagistas em meio ao isolamento social. Além disso, a forma de comprar e obter o cigarro foi ainda mais facilitada na pandemia de COVID-19. As pessoas podem comprar e solicitar o cigarro por meio de aplicativos como iFood, Rappi e James, ter o produto entregue em casa e, na maioria das vezes, sem a verificação da idade do comprador.

Estima-se que um terço da população adulta mundial seja tabagista, principalmente em países como China, Rússia e em países europeus. Destes, acredita-se que 60% desejam parar de fumar, mas não conseguem e não tem assistência para isso. Além disso, o hábito de fumar começa cedo, geralmente antes dos 20 anos, o que mostra a importância de orientar e alertar os jovens para os danos causados pelo tabaco

Além do cigarro, existem os charutos, cachimbos, cigarros de palha, narguilés e mais recentemente os cigarros eletrônicos. Algumas pessoas defendem esses tipos de fumo, alegando serem menos prejudiciais. No entanto, isso não é verdade. Algumas delas, como o narguilé por exemplo, são ainda mais nocivos, e o cigarro eletrônico, embora em geral não contenham nicotina, vem se mostrando um grande perigo. O uso de cigarro eletrônico vem crescendo no Brasil (onde a comercialização é proibida) e no mundo. O cigarro eletrônico está associado a danos irreparáveis ao pulmão e a um pior prognóstico nos pacientes que contraem COVID-19.

Por isso, o dia 31 de maio foi escolhido, em 1987 pela OMS como Dia Mundial Sem Tabaco, para orientar e reforçar junto à população as consequências sociais, políticas e econômicas do hábito de fumar e chamar a atenção de todos para os malefícios e danos causados a saúde de quem fuma ou convive com quem fuma. O mundo esta asfixiado e sem oxigênio, mas isso não vem apenas da pandemia de COVID-19. A pandemia de tabaco é maior, mais duradoura e mata muito mais do que qualquer outra e está na hora de começarmos a respirar e viver melhor!