No panorama global atual das neoplasias malignas, o câncer de colo uterino é o quarto tipo de câncer mais comumente diagnosticado entre as mulheres, e a terceira causa de morte por câncer entre as mulheres. Anualmente, cerca de 311.000 mulheres morrem por câncer de colo uterino, sendo que aproximadamente 90% dessas mortes ocorrem em países de média a baixa renda. No Brasil, o Instituto Nacional do Câncer estima para o triênio de 2020 a 2022 uma média 16.000 novos casos de câncer de colo uterino por ano, representando o terceiro câncer mais comum entre as mulheres brasileiras.

Apesar desse cenário, o câncer de colo uterino é uma doença evitável. Além disso, é potencialmente curável, quando diagnosticado precocemente e tratado de forma adequada. No ano de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma campanha mundial para o aceleramento da eliminação do câncer de colo uterino, com o compromisso de 194 países para a adoção de medidas que visam atingir esse objetivo. Tais medidas devem ser atingidas até o ano de 2030, com o objetivo de atingir uma incidência de no máximo 4 casos por 100.000 mulheres, fazendo com que o câncer de colo uterino deixe de ser um problema de saúde pública. Em estudo publicado recentemente, com base em uma análise de 78 países de baixa e média renda, estimou-se que, caso as metas da OMS sejam alcançadas, até o ano de 2120 serão evitadas quase 61 milhões de mortes por câncer de colo uterino. Ao longo dos próximos 10 anos, quase metade das mortes evitadas ocorreria na África sub-Sahariana.

 

Papilomavírus Humano (HPV)

O câncer de colo uterino é causado por uma infecção viral sexualmente transmissível. O vírus responsável é chamado papilomavírus humano (HPV), um vírus de DNA que apresenta mais de 200 sorotipos. Dentre eles, 14 tipos são causadores de câncer, sendo denominados de “alto risco”. Os tipos mais comumente associados ao câncer de colo uterino são o 16 e o 18, responsáveis por cerca de 70% dos casos desse tipo de câncer. A grande maioria das pessoas será infectada pelo HPV em algum momento da vida, sendo o maior pico de infecção logo após o início da vida sexual ativa. Além disso, sabe-se que algumas pessoas sofrerão infecções repetidas.

Frequentemente, a infecção pelo HPV sofre resolução espontânea, em um período que pode chegar a dois anos. No entanto, em alguns casos, a infecção pode persistir e levar ao desenvolvimento de lesões precursoras e, eventualmente, o câncer de colo uterino. O tempo médio entre a infecção e o desenvolvimento do câncer de colo uterino é de 15-20 anos. Existem alguns fatores de risco que estão associados a aumento do risco de persistência da infecção pelo HPV e, consequentemente, do desenvolvimento do câncer. São eles: deficiências do sistema imune, tabagismo (ativo e passivo), e concomitância de outras infecções sexualmente transmissíveis (como gonorreia e clamídia).

 

Estratégias de prevenção

A prevenção do câncer de colo uterino envolve a tomada de ações com o objetivo de reduzir o risco de desenvolvimento da doença. Com isso, é possível reduzir o número de novos casos da doença e, em última instância, reduzir também o número de mortes causadas pelo câncer em questão. O conhecimento da história natural da doença (Figura 1), incluindo sua causa infecciosa, os fatores de risco (deficiência imunológica, tabagismo, entre outros), o tempo para desenvolvimento de lesões precursoras e do câncer propriamente dito permitiu o delineamento de medidas que podem ser adotadas ao longo da vida da mulher, capazes de prevenir a doença.

Figura 1. História natural do desenvolvimento do câncer de colo uterino. Fonte: OPAS/OMS, 2013

As medidas de prevenção do desenvolvimento do câncer de colo uterino baseiam-se em dois pilares:

 

  1. Prevenção da infecção pelo HPV

A primeira vacina contra o HPV foi aprovada nos Estados Unidos da América (EUA) em 2006, pela Food and Drug Administration (FDA). Trata-se de uma vacina quadrivalente, que garante proteção contra os sorotipos 6, 11, 16 e 18. Mais recentemente, em 2014, foi aprovada nos EUA uma vacina nonavalente, que protege contra 9 sorotipos de HPV. No Brasil, a vacina quadrivalente foi introduzida no Programa Nacional de Imunização (PNI) no ano de 2014, inicialmente recomendada para meninas com idade entre 9 e 13 anos e, posteriormente, para meninos com idade de 11 a 13 anos.

As vacinas quadrivalente e nonavalente são capazes de prevenir mais de 95% das infecções pelo HPV tipos 16 e 18, mas também oferecem proteção cruzada com outros tipos menos comuns. A recomendação é que a vacina seja administrada antes do primeiro contato com o vírus, por isso a faixa etária recomendada no início da puberdade. Isso se deve ao fato de que o resultado obtido com a vacinação é melhor quando a menina ou o menino ainda não tiveram contato com o vírus.

Recomenda-se a aplicação de duas doses da vacina, com intervalo de seis meses. A Sociedade Brasileira de Imunizações recomenda que uma terceira dose (com intervalo de seis meses após a segunda) seja aplicada para aqueles adolescentes que recebem a primeira dose após os 15 anos. Outro grupo de meninas/mulheres nas quais se recomenda aplicação de uma terceira dose são aquelas infectadas pelo HIV. O esquema vacinal inicial, que foi adotado por diversos países, consistia na aplicação de 3 doses em um período de 6 meses (0, 1-2, 6 meses). No entanto, estudos posteriores mostraram que a quantidade de anticorpos produzida não era inferior quando se empregava um esquema de duas doses com intervalo de 6 meses. Uma estratégia que vem sendo adotada em alguns países consiste na aplicação de uma terceira dose após um intervalo de cinco anos desde a primeira dose, pois parece fornecer uma resposta imunológica mais sustentada ao longo do tempo.

As vacinas contra o HPV são bastante seguras. Os dados de ocorrência de efeitos colaterais são monitorados continuamente, não tendo sido identificadas reações graves e que causem preocupação.

 

  1. Detecção precoce e tratamento de lesões precursoras

O segundo pilar na prevenção do câncer de colo uterino baseia-se no rastreamento do câncer de colo uterino. A história do rastreamento começou no final da década de 1920, quando o patologista grego radicado nos EUA George Nicholas Papanicolaou publicou os resultados de seus estudos na diferenciação entre células normais e células cancerosas a partir de uma amostra coletada do colo uterino e colocada em uma lâmina de microscópio. Porém, somente após a publicação de seu célebre livro na década de 1940 que o teste – hoje conhecido pelo seu sobrenome – se tornou o padrão para rastreamento do câncer de colo uterino. Por ser um teste barato e de fácil coleta, foi rapidamente e amplamente implementado, levando à redução na incidência do câncer de colo uterino.

Mas em que consiste o rastreamento? O rastreamento refere-se à aplicação de um teste diagnóstico em pessoas sem sintomas da doença. O objetivo é detectar lesões precursoras de câncer ou mesmo o câncer, porém nos seus estágios mais iniciais. Atualmente, dispomos de três medidas para rastreamento: a. exame de Papanicolaou; b. inspeção visual do colo uterino com aplicação de ácido acético; c. exame para detecção de infecção por HPV de alto risco. A recomendação da OMS é de que todas as mulheres sejam submetidas a no mínimo um exame de rastreamento entre os 30 e 49 anos de idade.

No Brasil, o programa nacional de rastreamento está baseado principalmente na realização do exame de Papanicolaou, em um modelo oportunístico. Isso significa que as mulheres não são convocadas ativamente para serem submetidas ao exame, e sim aproveita-se a visita delas a uma unidade de saúde por outros motivos, para se oferecer o exame. A recomendação é de que o rastreamento seja iniciado aos 25 anos, sendo realizados dois exames com intervalo de um ano. Se ambos os exames forem negativos, os exames seguintes podem ser realizados a cada três anos. O rastreamento deve ser mantido até os 64 anos.

Inúmeros estudos evidenciam que os métodos de rastreamento são capazes de detectar as lesões precursoras de câncer de colo uterino, criando a oportunidade para que elas sejam tratadas e, com isso, evitamos que elas evoluam para o câncer. O tratamento dessas lesões é capaz de evitar a maioria dos casos de câncer de colo uterino. Por isso, o rastreamento deve sempre estar atrelado ao fornecimento de tratamento adequado.

Como vimos, a vacinação contra o HPV é altamente eficaz na prevenção da infecção pelo HPV, um vírus responsável pela grande maioria dos casos de câncer de colo uterino. Considerando-se o longo período para desenvolvimento da doença, após a infecção inicial, entendemos que o efeito da vacinação será percebido em 20-30 anos. Por esse motivo, o rastreamento do câncer de colo uterino deve ser reforçado, mesmo nos países que implementem a vacinação.

O programa da OMS para o aceleramento da eliminação do câncer de colo uterino envolve três medidas:

  1. Cobertura de vacinação de 90% das meninas até os 15 anos
  2. Cobertura de rastreamento do câncer de colo uterino de 70%, aos 35 anos e aos 45 anos, com testes adequados e de qualidade
  3. Garantia de que 90% das mulheres com doença de colo uterino (lesões precursoras ou câncer) recebam tratamento adequado e em tempo hábil

Em 2020, pesquisadores publicaram uma análise de modelos estatísticos considerando 78 países de baixa e média renda para a avaliação dos resultados de longo prazo da associação da vacinação contra HPV ao rastreamento. Estimou-se que quando realizada apenas a vacinação, 60% dos países atingiriam uma incidência de até 4 casos/100.000 mulheres (o alvo definido pela OMS). A combinação com o exame de rastreamento elevou essa porcentagem de países para 99%. Além disso, a eliminação do câncer de colo uterino seria alcançada 11-31 anos antes com a estratégia combinada (vacinação + rastreamento), quando comparada à vacinação apenas.

 

Referências

  1. International Agency for Research on Cancer. GLOBOCAN. Cancer today n.d. http://gco.iarc.fr/today. Acessado em 22 de fevereiro de 2021.
  2. Arbyn M, Weiderpass E, Bruni L, et al. Estimates of incidence and mortality of cervical cancer in 2018: a worldwide analysis. Lancet Glob Health. 2020;8(2):e191-e203.
  3. World Health Organization. Human papillomavirus (HPV) and cervical cancer.. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/human-papillomavirus-(hpv)-and-cervical-cancer. Acessado em 22 de fevereiro de 2021.
  4. Instituto Nacional de Câncer (INCA). Estatísticas de câncer. Disponível em: https://www.inca.gov.br/numeros-de-cancer. Acessado em 22 de fevereiro de 2021.
  5. Canfell K, Kim JJ, Brisson M, et al. Mortality impact of achieving WHO cervical cancer elimination targets: a comparative modelling analysis in 78 low-income and lower-middle-income countries. Lancet. 2020;395:591-603.
  6. Organização Pan-Americana da Saúde. Nota de orientação da OPAS/OMS: prevenção e controle de amplo alcance do câncer de colo do útero: um futuro mais saudável para meninas e mulheres. Washington, DC: OPAS, 2013.
  7. Programa Nacional de Imunizações. Ministério da Saúde. Calendário Nacional de Vacinação. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z-1/c/calendario-de-vacinacao. Acessado em 25 de fevereiro de 2021.
  8. Yong Tan S, Tatsumura Y. George Papanicolaou (1883-1962): discoverer of the Pap smear. Singapore Med J. 2015;56(10):586-7.
  9. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Coordenação de Prevenção e Vigilância. Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer de colo uterino. 2. Ed. Rio de Janeiro: INCA, 2016.
  10. Brisson M, Kim JJ, Canfell K, et al. Impact of HPV vaccination and cervical screening on cervical cancer elimination: a comparative modelling analysis in 78 low-income and lower-middle-income countries. Lancet. 2020;395:575-90.