Primum non nocere (do latim, em tradução livre, “primeiramente, não fazer o mal”). Esta frase é um dos princípios essenciais da Medicina e lembra que o médico, antes de tudo, não pode fazer algo a um paciente que faça mal. Isso parece óbvio, certo? Nem sempre, ao negarmos a ciência, corremos grande risco de infringir este preceito. Quando algum remédio não tem comprovação de que funciona e ainda tem potencial para gerar efeitos colaterais, a sua prescrição é danosa ao paciente.
Nas últimas semanas, temos acompanhando, pela mídia, a discussão (agora mais política que científica) em relação ao uso (ou não) da cloroquina/hidroxicloroquina (CQ/HCQ) para o tratamento da COVID19. Tudo (aparentemente) começou com um estudo francês que avaliou o efeito da CQ/HCQ na redução de carga viral da garganta de pacientes com COVID19. Foi uma análise mal planejada, com poucos pacientes, sem método científico adequado, que não comparou com um grupo controle e que, ainda por cima, há suspeita de manipulação de dados para reportar os achados.
Antes, alguns estudos de laboratório tinham mostrado que a CQ/HCQ tinha atividade in vitro (ou seja, não em humanos) contra a COVID19. Do mesmo modo, várias outras doenças mostraram ser sensíveis ao uso da medicação in vitro, como Zika, dengue ou gripe, porém, quando levada ao estudo em pessoas, o efeito não foi confirmado. E isso acontece – e muito – com diversas outras medicações e doenças. E talvez esse seja um dos maiores desafios da ciência. Hoje, menos de 1% das drogas que têm resultado em laboratórios chegam ao ponto de serem aprovadas para uso em humanos.
Após o estudo francês, um relato de pesquisadores chineses, sem método estatístico adequado, sugeriu que a HCQ seria eficaz. Com pouca margem para dúvida, a conclusão não deveria ser essa, tanto que, até hoje, não foi publicado em nenhuma revista médica com revisão por pares.
Além deste, outros relatos retrospectivos e poucos prospectivos ou não mostraram ou não tiveram métodos corretos para comprovar ou refutar qualquer dúvida científica. Um deles, com 1.500 pacientes e publicado na talvez maior revista médica do mundo (The New England Journal of Medicine), não evidenciou diferença para quem recebeu HCQ. Ademais, no British Medical Journal (BMJ), também de grande reconhecimento internacional, uma análise de 181 pacientes tratados precocemente (48h da internação) também resultou negativa.
Por outro lado, ao mesmo tempo que notadamente não houve nenhum estudo comprovando o benefício, já há alguns que mostram que, na verdade, a CQ/HCQ pode fazer mal. Dentre os efeitos colaterais conhecidos da CQ/HCQ estão arritmias cardíacas, insuficiência hepática, reações dermatológicas e problemas visuais, alguns potencialmente fatais, outros com morbidade crônica muito alta. Os dois estudos mais importantes que mostram os riscos da CQ/HCQ saíram em duas revistas de grande renome científico (JAMA e Lancet) e concluem que os efeitos adversos são, sim, importantes. O maior deles foi publicado em 22 de maio, sexta-feira passada, e incluiu quase 100.000 pacientes. Na análise, a CQ/HCQ não mostraram benefício e, além disso, aumentaram o risco de morte e de arritmias graves de forma significativa.
Muitos médicos têm se sentido coagidos por decisões autoritárias, irresponsáveis e inescrupulosas de seus governantes, que utilizam medicações como arma política. O Ministério da Saúde publicou recentemente – inicialmente sem assinatura – uma recomendação de uso de CQ/HCQ, um documento falho na parte científica e que traz obscurantismo e conflito para um momento em que mais de 22.000 brasileiros (número de 26 de maio de 2020) já morreram da COVID19. A OMS, inclusive, já suspendeu (em 25 de maio) os estudos que tinha com a droga por falta de segurança da mesma. Reforça-se ainda que algum médico – “famoso” ou não – ter usado (ou não) a CQ/HCQ para se tratar não é evidência nenhuma de que a medicação funciona.
Deve-se deixar claro que o médico tem o direito à autonomia e à objeção de consciência, ou seja, de não fazer algo com o qual não concorda cientificamente. Ética e moralmente, não podemos, mas sim devemos fazer o que a ciência sugere. Além disso, CQ/HCQ não estão em bula e, portanto, são consideradas off-label, não devendo ser motivo de preocupação a coação do governo para tal prescrição. Determinações unilaterais como essa apenas criam discórdia, prejudicam a relação médico-paciente e, mais importante, trazem malefícios aos pacientes.
A ciência é mutável e, hoje, ela deixa bem claro que a CQ/HCQ não é uma opção de tratamento adequada para COVID19, já que, além de não fazer bem, pode fazer mal. Num momento de desespero entre grande parte da população e em meio uma onda de desinformação, a reponsabilidade do médico aumenta e devemos fazer a Medicina de forma impecável, utilizando a melhor evidência científica. Para isso, hoje, com tantas forças contrárias, e cheias de “negacionismo”, nós médicos e todos os profissionais de saúde temos que ter coragem para fazer o que sabemos ser certo, sem medo de não prejudicar o nosso principal foco: o paciente. E se me questionarem se eu daria a CQ/HCQ para algum familiar meu a resposta, hoje, é simples: Não, assim como podemos dar a volta na Terra viajando em apenas uma direção, afinal, ela ainda é esférica, certo?
Referências
https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.03.22.20040758v3.full.pdf
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1477893920302179?via%3Dihub
https://pgibertie.files.wordpress.com/2020/04/2020.04.15-journal-manuscript-final.pdf
https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/2766117
https://www.bmj.com/content/369/bmj.m1844
http://www.zjujournals.com/med/EN/10.3785/j.issn.1008-9292.2020.03.03
https://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMoa2012410?articleTools=true
https://www.bmj.com/content/369/bmj.m1432
https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31180-6/fulltext
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/05/25/oms-suspende-teste-de-cloroquina.htm
Cloroquina não é tratamento para COVID19
Oncologista – CRM 156.336
Formado em Medicina e com residência em Clínica Médica e Oncologia Clínica pela Unicamp. Mestre em Oncologia pela Unicamp. Possui título de especialista em Oncologia… Veja Mais