Saudade é o amor que fica. Linda definição que fala sobre o que permanece, quando se perde. É estranho pensar que algo possa continuar quando aparentemente as perdas são irreparáveis. Causa ainda mais estranhamento, crer que é possível se preparar para isso. No entanto, é possível, sim, de alguma maneira nos organizarmos antecipadamente.

Conviver diariamente com a possibilidade de perda de um ente querido traz no mínimo ansiedade e medo do desconhecido e, quando um familiar nosso adoece, é como se adoecêssemos junto. Assim como o doente, necessitamos do mesmo tempo para absorver, gradualmente, a realidade e se adaptar a nova rotina, que na grande maioria das vezes, demanda esforço físico e disponibilidade emocional. Por outro lado, a proximidade ao doente e seu cuidado podem potencializar a experiência do tempo e favorecer a conexão e assimilação lenta da realidade.

A doença em boa parte das vezes nos pega no atropelo da nossa própria vida. Sem pedir licença, não escolhe apenas as famílias com a melhor dinâmica, sem conflitos de relacionamento, para estimular o cuidado. Acomete-nos no susto e, ao mesmo tempo, nos conecta quase como necessidade básica as nossas prioridades mais essenciais. Isto acaba gerando uma oportunidade única de revisão, de retrospectiva e de planejamentos futuros, baseados no que passou a ser ou continuou a ser importante como propósito de vida.

Diante disso, preparar-se para as perdas é também aparar as arestas da vida. É experimentar ter conversas difíceis sobre conflitos nunca antes mencionados. É ser impulsionado a expressar os sentimentos mais profundos e resolver pendências de qualquer origem. É sobre a chance de poder perdoar e ser perdoado. É passar a limpo e construir uma relação de paz com o que foi vivido dentro dos vínculos.

Não é incomum entrarmos em confronto com nossa própria identidade.  São inúmeras as situações que podem impactar na história que nos contamos sobre nós mesmos. Pelas condições que a vida nos impõe e a depender da maneira como cultivamos nossos vínculos, construímos relações com diferentes formas de apego com nossos entes. Nos mais inseguros, nas relações mais simbióticas, não se sabe onde um começa e o outro termina e, dentro disso, quando um se vai, é como se outro fosse junto ou não encontrasse mais sentido para existir. Para se preparar, faz-se necessário muitas vezes iniciar mudanças de concepções sobre nossa própria identidade.

Todos temos nossas próprias rotinas para administrar e planos futuros para nossa própria vida. No entanto, diante da notícia de uma perda anunciada de um ente querido, preocupar-se consigo mesmo pode parecer uma traição. Tirar o cuidado da óptica da culpa alivia tensões e abre caminhos para que cada um dê o que é possível em cada momento, sem se colocar em lugar de débito constante. Exige disponibilidade, mas a entrega ao cuidado pode ser consciente, atenta aos limites pessoais de cada um e num ambiente de comunicação honesta que favoreça a aproximação, não limitada pelas as barreiras do silêncio.

Outros facilitadores que nos ajudam a organizarmos diante de perdas potenciais ainda são: ter flexibilidade dentro da estrutura familiar que permita redefinição de papéis. A adaptação vem da reinvenção a partir das adversidades. O filho que antes era cuidado passa a ser cuidador. A esposa dependente assume todas as responsabilidades da casa. O marido distante se torna o elo mais forte de união da família.

A boa comunicação com a equipe de saúde assistente e entre familiares ajuda a desenvolver segurança no caminho traçado e maior independência. Conhecer o prognóstico e a proposta de tratamento, o objetivo e valores do paciente, o ciclo evolutivo da doença e sintomas esperados, nos empoderam de mais ferramentas e potencial ajuda. É preciso participar de todas as diferentes fases do adoecimento. Isto nos dá intimidade e algum senso de controle, quando tudo parece muito aterrorizador e incontrolável. Sistemas de apoio, formal ou informal, são cruciais.

Nada substituirá a presença, o valor e a importância que uma pessoa querida assume em nossas vidas. A dor da perda e da antecipação da mesma são reais e devem ser reconhecidas. Exigem um olhar compassivo e também de cuidado, para que se possa aceitar e estabelecer uma nova forma de vinculação simbólica com o ente que partiu, de maneira a integrá-lo à nova realidade e, a partir daí, seguir em frente e acreditar em recomeços.