Os gliomas constituem o maior grupo de tumores cerebrais primários malignos, com cerca de 30% de incidência entre eles. São ditos primários porque têm origem diretamente cérebro e não decorrem de metáteses de outros sítios. Esses gliomas que afetam o sistema nervoso central podem ser divididos em dois grandes grupos: os de baixo grau, de menor agressividade e melhor evolução, e os de alto grau, de grande agressividade, que levam a um tempo de vida mediano em torno de 12 a 16 meses, a despeito dos avanços tecnológicos e do desenvolvimento de novos medicamentos na última década. Apesar da incidência relativamente baixa dos gliomas, a mortalidade decorrente deles é bastante alta, com apenas 5 a 10% dos pacientes vivos em cinco anos. No Brasil, os dados epidemiológicos para os gliomas de alto grau não são bem conhecidos, mas estimam-se 11.320 novos casos de tumores do sistema nervoso central como um todo para o biênio 2018/2019.

Os fatores que contribuem para o desenvolvimento de gliomas ainda não são bem compreendidos, mesmo porque a grande maioria dos pacientes com essa doença não apresentam histórico familiar ou qualquer outro fator de risco identificável. Também não existem programas de rastreamento para diagnóstico precoce da doença, que possibilitaria tratamentos em fase mais precoce e melhores desfechos, a exemplo do que ocorre para a detecção do câncer de mama, através da mamografia, ou da utilização do Papanicolau, para os tumores de colo de útero.

Na literatura, a angiogênese é descrita como o mecanismo de formação de vasos sanguíneos e é apontada como crucial no desenvolvimento de gliomas de alto grau. A produção de vasos sanguíneos é variável em seres humanos, e é determinada por alterações genéticas herdadas.

Diante das constatações – os gliomas de alto grau levam à alta mortalidade, seus fatores de risco são pouco compreendidos, o aumento de vasos sanguíneos é considerado crucial para o desenvolvimento tumoral e estaria ligado às modificações genéticas, não existem processos de rastreamento da doença que poderiam levar ao seu diagnóstico e tratamento precoce – realizamos, durante cinco anos, estudos para localizar genes que estariam ligados ao risco de desenvolvimento da doença e que poderiam servir como elementos para o rastreamento desta neoplasia que, embora de baixa incidência, ocupa a nona e décima posição entre os tumores mais prevalentes entre homens e mulheres no Brasil.

A pesquisa, desenvolvida no Laboratório de Genética do Câncer (Lageca) da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, foi orientada pela responsável pelo laboratório, professora Dra. Carmen Sílvia Passos Lima, que mantêm linhas de pesquisas relacionadas à genética do câncer.  O estudo em questão, que teve como foco tumores cerebrais de alto grau, contou com a colaboração do Departamento de Oncologia Clinica e do Departamento de Neurologia da FCM, que recrutaram pacientes atendidos, respectivamente, no ambulatório de Oncologia Clínica e no ambulatório de Neurocirurgia e, também, do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da USP, que colaborou fornecendo material genético e dados de seus pacientes.

Resultados

A motivação da pesquisa adveio ainda do fato de que, talvez devido à sua baixa incidência, trata-se de uma doença muito pouco estudada no mundo. O estudo se justifica particularmente no Brasil, em que prevalece uma população altamente miscigenada, enquanto trabalhos desenvolvidos na Europa, na China envolvem povos com características étnicas completamente diferentes e homogêneas, o que pode determinar alterações genéticas herdadas também diferentes. Em vista disso, propusemo-nos a localizar alterações genéticas herdadas, encontradas em brasileiros, que podem levar certos indivíduos a enfrentar mais riscos do que outros em relação ao desenvolvimento de gliomas de alto grau, foco que adotamos principalmente em decorrência da maior letalidade desses tumores e do desconhecimento dos seus fatores de risco.

Como já é sabido que nos casos de glioma de alto grau o aumento da vascularização é essencial para o desenvolvimento e crescimento do tumor, a pesquisa centrou-se em descobrir se efetivamente existia uma correlação entre alterações em genes relacionados ao processo de formação de vascularização e o desenvolvimento da doença na população brasileira.  Para isso, o estudo incluiu 205 pacientes diagnosticados com gliomas de alto grau e 205 controles (pessoas saudáveis), doadoras do banco de sangue do hemocentro da Unicamp, para avaliação genética.

Os resultados das análises permitiram comprovar, de forma inédita na população brasileira, que determinadas alterações genéticas são responsáveis pelo aumento da vascularização e pelo maior risco de desenvolvimento de gliomas, corroborando achados de grupos internacionais em trabalhos desenvolvidos com outras etnias em Portugal e na China. Mais que isso, foram também descobertas alterações genéticas inéditas que elevam o risco de desenvolver o glioma, que não haviam sido ainda reportadas mesmo em nível internacional. Esses achados acabam de ser publicados na edição de setembro de 2019, da revista Tumor Biology, com o seguinte endereço eletrônico: https://doi.org/10.1177/1010428319872092

Consequências

No que podem acrescentar essas novas descobertas? A perspectiva é a de que os novos achados, conjuntamente com os resultados obtidos por pesquisadores de outros países, possam revelar pontos de intersecção que potencializem os resultados e permitam chegar a um melhor entendimento da doença e a formas de rastreamento dirigido. No rumo destes objetivos, estamos agora compilando conclusões de trabalhos publicados em nível internacional. Aliando as nossas descobertas com as de outras vias genéticas já descritas, que também apontam na direção do aumento do risco da doença, talvez possamos formar uma ferramenta de rastreio para uma população especifica.

No estudo, avaliamos nove alterações genéticas em genes relacionados ao processo de formação de vasos e encontramos um significativo aumento no risco da doença em quatro delas. Como os gliomas podem ter origem em outras vias genéticas herdadas, juntando os dados desse trabalho aos outros estudos que já reportaram aumento de risco da doença com alterações de genes em outras vias, aumenta-se o potencial de se chegar ao que se chama de “assinatura genética” de alto risco. Se identificado em um mesmo individuo um conjunto dos fatores que o predispõem ao desenvolvimento do tumor, seria viável submetê-lo, periodicamente, a exames que detectem precocemente o desenvolvimento da doença.

A presença das alterações genéticas que estudamos está relacionada ao aumento da possibilidade de seu portador desenvolver a doença. E, se levadas em consideração concomitantemente outras vias genéticas também estudadas, têm-se um conjunto de modificações genéticas que podem levar ao aumento ainda maior do risco, e é para esses indivíduos que pensamos em um dia realizar um rastreamento individualizado que potencialmente impacte em melhores desfechos.

(texto referente à tese de mestrado da oncologista Dra. Vivian Castro Antunes de Vasconcelos, pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp).