O Brasil é um país de oportunidades. Temos acesso às tecnologias avançadas no diagnóstico e tratamento do câncer. Podemos nos guiar por testes moleculares para oferecer terapia sistêmica personalizada e também podemos utilizar cirurgia robótica ou radioterapia com intensidade modulada para diminuir a agressividade dos tratamentos localizados.

Por outro lado, convivemos também com filas, infraestrutura precária, excesso de burocracia, que culminam em falta de acesso à saúde.

Sabemos que o orçamento destinado à saúde no Brasil é escasso. Principalmente no Sistema Único de Saúde (SUS), mas também na saúde suplementar. E, em um ambiente em que os recursos são restritos, saber utilizá-los com inteligência é uma virtude. E os médicos cada vez mais têm visto que precisam mudar suas atitudes frente aos pacientes e, principalmente, aos gestores.

Tradicionalmente, um bom médico era preocupado apenas em se atualizar com conhecimentos técnicos para oferecer a seus pacientes o que considerava “melhor”. A prescrição ou recomendação era feita e o doente precisava buscar, de alguma forma, aquele tratamento indicado. Seja por compra direta, seja por acesso via farmácias de alto custo ou pela disponibilização do plano de saúde.

Com o encarecimento da Medicina e o surgimento de terapias de altíssimo custo, essa busca pelo “melhor” tratamento muitas vezes se viu como utópica. E se tornou necessário entender melhor os sistemas de saúde, a incorporação de tecnologias em saúde e a avaliação crítica da informação. Dessa necessidade surgiu o conceito de Medicina Baseada em Valores, que visa integrar a melhor evidência externa, a experiência do médico e a disponibilidade no sistema de saúde, levando em conta valores e preferências individuais do paciente. Isso porque quando lidamos com recursos limitados, uma melhor gestão é urgente. E escolhas precisam ser feitas.

No mundo moderno e na saúde de custos em que o céu é o limite, é preciso reconhecer que a avaliação de efetividade é necessária, mas não pode ser o suficiente para tomada de decisão. A sociedade precisa ter maturidade para definir o quanto está disposta a investir em medicamentos e tecnologias em saúde. E precisa entender que tecnologias que proporcionem pequenos benefícios não podem custar demais.

No Brasil, foi criada uma estrutura com múltiplas agências reguladoras, já pensando na Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS). A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) cuida dos registros de medicamentos, avaliando eficácia e segurança. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) cuida das coberturas obrigatórias dos planos de saúde. E a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) faz a regulação de novas tecnologias no sistema público de saúde.

Como era de se esperar, na maioria das vezes essas três agências não conversam bem entre si. E mesmo definições básicas sobre o que “funciona” ou “não funciona” frequentemente são divergentes. E o resultado são regras desconexas, definições questionáveis e decisões finais com falta de transparência.

Um exemplo simples de entender é relacionado à cobertura pelos planos de saúde de tratamentos quimioterápicos contra o câncer. A via de administração (injetável ou por comprimidos) define a possibilidade de acesso ao tratamento pela população. De maneira simples, se um medicamento injetável é registrado pela Anvisa para determinada doença, qualquer plano de saúde automaticamente deve oferecer cobertura para sua utilização, independentemente do seu custo e da relação custo-benefício, no dia seguinte à publicação no Diário Oficial da União. Por outro lado, se um medicamento por cápsulas é registrado pela Anvisa, é provável que fique na “fila” da ANS para avaliação de cobertura, utilizando critérios ainda vagos de custo-benefício, por um período que varia de dois a quatro anos.

Outro exemplo simples é relacionado à incorporação de tratamentos contra o câncer no SUS. Atualmente, instituições que dependem exclusivamente de verbas do SUS para tratar pacientes com câncer conseguem oferecer apenas tratamentos quimioterápicos que foram desenvolvidos até o início dos anos 2000. Anticorpos monoclonais, terapias-alvo e imunoterapia são raríssimos, devido ao seu alto custo. A Conitec, comissão que deveria avaliar com critérios claros as demandas da sociedade quanto às novas tecnologias, na maioria das vezes rejeitou a solicitação, justificando que não considerava que as novas medicações realmente traziam benefício relevante.

Assim, o abismo entre saúde pública e privada só aumentou nos últimos anos.

Nos últimos três anos tivemos três decisões favoráveis à incorporação de novos medicamentos contra o câncer, no SUS. A decisão mais antiga, de dezembro de 2017, recomendou a incorporação ao SUS do Pertuzumabe no tratamento do câncer de mama HER2-positivo metastático. A segunda, em dezembro de 2018, recomendou a incorporação ao SUS do Pazopanibe ou Sunitinibe no tratamento do câncer de rim metastático. Em nenhum dos casos pacientes com essas neoplasias conseguem realmente acesso ao tratamento, ficando à mercê de terapias obsoletas e em grande parte completamente ineficazes.

Não adianta somente reclamar e muito menos fugir do problema. Todos precisam entender que incorporações “automáticas” de tecnologias não são possíveis. Profissionais de saúde precisam ser bem treinados em conceitos de Medicina Baseada em Valores para entenderem que incorporações racionais de tecnologias são possíveis e viáveis. A participação de todos (governo, indústria farmacêutica, médicos e pacientes) precisa acontecer para enriquecer o processo e com o objetivo de definir melhor as prioridades. E esforços coordenados sempre levam mais longe.