Diante de situações difíceis de sofrimento intenso, conseguimos encontrar dentro de nós uma força inata, que parece nos ajudar a seguir em frente. Esta é mesma força que imprimi sentido no viver e impõe transcendência de vida. Pode ser traduzida em palavras para o que conhecemos como espiritualidade, que também pode se dar por meio da religião, da arte, da música e até mesmo da natureza, a depender das convicções e crenças de cada um.
A espiritualidade é um conceito multidimensional, cuja experiência traz significado para a vida pessoal, a história e a realidade em que se vive. É um aspecto que está relacionado à condição humana e a uma necessidade de conectar o homem consigo mesmo, com os outros e com o sagrado.
Pode estar relacionada com a fé em Deus ou a uma forca superior, mas difere, enquanto conceito, da definição de religião. Esta compreende um sistema social de organização, que envolve celebrações e rituais que permitem acessar a espiritualidade. Religião caracteriza-se, de certa forma, pelas fronteiras que impõe e espiritualidade, justamente pela ausência delas e por envolver um sentido mais amplo, de busca de propósito.
A espiritualidade se dá também como uma forma de transmissão de compaixão, esperança e auxílio ao lidar com a consciência de nossa finitude. No contexto de uma doença ameaçadora de vida, em que entramos em contato com uma possibilidade de interrupção de planos, suscitam reflexões que nos obrigam a voltar nosso olhar para o momento presente, passado e futuro, trazendo inúmeras inquietações, tanto de cunho prático, como também holístico e espiritual.
É comum uma revisão de tudo o que já foi vivido e do que é de valor para cada indivíduo, trazendo uma nova percepção sobre o que existe e o que já passou. Para que viemos a esse mundo? Cumprimos nossa missão? O que ainda nos falta ou prende aqui? Agi conforme meus princípios, minha moral ou estou em dívida? Vivi momentos de amor, alegria? Fui compassivo com o outro? Deixei um legado para os que ficam?
Nesse sentido, encontramos amparo e ajuda qualificada para abordagem adequada de nossas necessidades espirituais pelo atendimento multidisciplinar de uma equipe de Cuidados Paliativos, que possibilita o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento e de retomada de consciência de si e de nosso lugar no mundo, assim como auxílio para definição de prioridades e resgate de essência e sentido.
Dentre essas necessidades, podemos citar a demanda por resolução de pendências e por deixar este mundo sem arrependimentos. Reconciliação, perdão e estar em paz com Deus ou familiares dão significado de conclusão de vida. Outra necessidade espiritual tem a ver com controle e envolvimento. Manter-se independente e confiar em suas forças interiores levam a autoconfiança e autonomia. Estar envolvido em suas próprias atividades de vida diária, com a família e entes queridos, assim como em decisões acerca da própria vida, nos conectam com o que nos move e nos constitui. Isso traz segurança e permite atitudes mais genuínas diante do fim, assim como o planejamento do mesmo.
Sem a correta abordagem dessas necessidades, é comum nos depararmos com um estresse espiritual que inclusive pode levar a piora dos sintomas físicos e emocionais, causando incertezas, insegurança e ansiedade em relação ao desconhecido, com evidências já de aumento do número de hospitalizações ou procura a serviços de urgências. Ter um espaço seguro para ventilar sobre o medo ou a morte, assim como sobre possíveis crenças a respeito da vida após a morte, protegem e confortam.
Estar presente, vivenciando cada momento, dia após dia, podendo expressar amor e gratidão, também contribuem para elevar os espíritos e se mostram efetivos em lentificar o declínio clínico e social. É a permissão e coragem para nos abrir para nós mesmos que fazem transcender qualquer sofrimento. Na área da saúde, abordar essa dimensão de cuidado é acessar o ser humano em sua integralidade.
“Há um ditado na tradição tibetana segundo o qual a melhor medida do desenvolvimento espiritual é a forma como vamos encarar a morte quando o dia final chegar. Somos aconselhados a ir, se não com alegria, pelo menos sem remorsos. Além disso, nos dizem, a consciência nua de nossa mortalidade pode nos ajudar a alinhar nossas mais profundas aspirações com as ações do nosso cotidiano. Isso também pode trazer à nossa vida coragem e uma espécie de sinceridade brutal. Sobra pouco espaço para o fingimento ou para manter uma fachada, além de se revelar a esterilidade de gastar energia em excesso cuidando de nosso ego. Ë um conselho duro, mas útil.”
Thupten Jinpa
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